segunda-feira, 28 de maio de 2012

Correspondente

Este mês deixo de lado a falação a respeito dos textos teatrais que tenho escrito ao longo dos anos, e de seus processos de criação e montagem, para falar da escrita em outros formatos. Em especial das correspondências. Eu sempre amei escrever como já devo ter comentado em algum outro momento aqui. Adorava quando a professora dizia: "-Redação!" Arrancar a folha do caderno e mergulhar nas palavras sempre foi um ritual especial para mim. E a grande riqueza de minha infância provém dos livros que tinha em casa. Na verdade não lembro de ter comprado muitas roupas na infância, mas lembro de ter ido comprar livros inúmeras vezes com meu pai, e que os vendedores de livros sempre faziam um pit-stop em minha casa. Cheiro de livro novo, coisa boa! E fora os livros haviam as histórias dos irmãos, dos primos, dos tios e tias, e dos avós. E uma das coisas mais incríveis nas histórias de minha família eram (e são)  as cartas de meu avô paterno Domingos Barcellos, suas histórias de amor, a descrição do Monte Bonito, lugar onde nasceu e passou a infância e adolescência, e depois as cartas de sua vida no Rio de Janeiro e em diversos lugares mundo afora. E seus artigos e crônicas de coisas que escrevia para jornais do Rio de Janeiro. E em suas fotos os amigos escritores e as citações de este e daquele escritor. Achava tão importante isto de saber que um avô que não tive a oportunidade de conhecer pessoalmente podia ser tão presente e vivo em minha educação. E me achava a mais importante das criaturas quando falava que meu avô escrevia para um jornal. Sempre achei que escrever para um jornal, para uma revista, fosse uma honraria concedida apenas a alguns raros espécimes da raça humana. Como se escrever para um jornal fosse um chamado intergaláctico, uma benção divina onde Deus chamaria uma legião de anjos e num estalar de dedos daria esta benção, como havia dado ao meu avô e como dava aos jornalistas das revistas que li ao longo da vida. Fossem elas as caprichos (que ainda guardo para preservar as referências da adolescência) ou as outras tantas que li da recreio a super interessante, da Planeta a Mondo Diplomatique, da Bravo a Boa Forma, da Cláudia a Cult. Com a internet os jornalistas e escritores passaram a habitar um espaço mais próximo na vida da gente: o feed de notícias. Quando escrevia seus artigos, crônicas e cartas certamente meu avô sequer supôs, mesmo diante de toda a sua criatividade, de como caminharia a tecnologia da comunicação e em especial do ato de escrever. Descobri o prazer de escrever cartas nas férias do colégio, eu e minha melhor amiga de infância, a Simone, morávamos a duas quadras e meia de distância, mas nas férias escrevíamos cartas uma para outra. Era engraçado pois as vezes eu chegava na casa dela e eu perguntava:  "-O que estas fazendo? "e ela respondia: "-Estou respondendo a tua carta." Cartas que lamentavelmente perderam-se no tempo. Quando deixei o sul e fui morar no Maranhão aos 12 anos de idade este prazer de me corresponder cresceu. E eu escrevia para Simone, uma carta diretamente para ela e outra para que fosse lida para a turma do Colégio Pelotense que me acompanhara ao longo dos anos. E assim meus colegas sabiam todas as minhas impressões diante da nova vida que levava. Da Vila militar à escola, das ruas à gastronomia local, e até de quando iniciei a fazer a teatro, tudo era relatado por cartas. Quando eu voltei do Maranhão minhas colegas perguntavam de coisas que eu tinha visto e vivido, detalhes que eu até já havia digerido e esquecido. E lá no Maranhão recebi as cartas de meus irmãos que ficaram no sul, em especial do meu saudoso mano que narrava ora de maneira irônica ou de forma emotiva, as saudades e a vida cotidiana e todos na varanda de casa escutávamos com algumas pausas tchecovianas para enxugar as lágrimas diante da saudade e da beleza de suas correspondências. Depois eu ainda escrevi muitas cartas para muitas pessoas. Quando voltei para o sul escrevi a alguns amigos do Maranhão e ao meu pai, que ainda ficou um tempo vivendo por lá. E me correspondia em inglês com pessoas do Japão através de amizades de um clube de correspondência que havia no Colégio. Quando fui viver em  Montevideo eu sempre escrevia para contar a parentada como minhas primeiras façanhas fora do útero de nome família estavam me ensinando a viver. Lembro também, e isto faz com que eu as vésperas de mais um aniversário me sinta imensamente jurássica, que em minhas viagens com teatro escrevia cartas para muitos amigos e parentes, enviando o meu olhar em especial a respeito da cultura de cada local. E enviando cartões postais dos pontos turísticos dos locais que conhecia tal como fizera meu avô com meu pai, para manter um vínculo com o filho que vivia distante. Um de meus amigos me disse que tinha uma caixa cheia delas até  unir-se a uma namorada ciumenta que destruiu impiedosamente o acervo de minhas narrativas mundo afora achando que eu eram cartas de um amor do passado.
Eu não tinha ideia de quanto escrevia até que um dos meus sobrinhos mais velhos um dia me alcançou um álbum com postais e outras tantas porcarias que eu lhe enviara. Eu entrei em choque pois eram todos os postais, cartas e lembranças que eu tinha enviado de minhas viagens...Um álbum, sim! Um álbum de minhas correspondências. E cada carta mais lindinha com detalhes dos locais que conhecia numa escrita que ia de acordo com a idade que tinha. Postais sem palavras apenas com desenhos a cartas com gírias adolescentes. Nossa, meu avô ficaria orgulhoso de mim, pensei. E se hoje tenho algum vínculo com minha sobrinha mais velha, foi graças as correspondências que eu lhe enviava. E assim que ela aprendeu a escrever, em letras tortas fez um esforço para me mandar uma carta e dizer que agora já sabia escrever e gostaria de agradecer todas as cartas que tinha lhe escrito. Mas, me perdoem todos a quem escrevi,  meu mais ilustre correspondente foi Paulo Autran (1922-2007), conheci ele em 1993 e até as vésperas de sua partida para o grande palco ainda nos  correspondemos. Trocar cartas com ele era de uma responsabilidade, mas ele sempre me estimulava a escrever e se eu passava um tempo sem enviar as minhas longas cartas ele me cobrava e dizia com um brilho especial de seu olhos bicolores: "-Eu tenho sentido falta das suas cartas."  Eu mudava muito de endereço, por causa da vida nômade a que me dediquei a levar, e algumas vezes era difícil lhe enviar um endereço para receber suas cartas logo deixava de escrever. No dia que nos encontramos pessoalmente pela última vez em 3 de junho de 2007, eu lhe entreguei uma monografia que havia escrito para uma disciplina da faculdade, sobre o TBC (teatro Brasileiro de Comédia). E assim que ele leu me telefonou emocionado. Ele não era muito de ligar, gostava mesmo de trocar cartas. Foi a última vez que nos falamos. O que fez que depois que ele partisse me desmotivasse a trocar correspondências. Quando estive na Itália em fevereiro passado tentei resgatar algo semelhante e enviei alguns postais, em especial para a safra de sobrinhas a quem nunca havia escrito. Uma delas com quem falo muito pouco me disse emocionada que nunca havia recebido um postal e o primeiro que recebe na vida é de Roma...ao sentir sua emoção pela correspondência recebida de uma tia distante me coloquei no lugar dela...e me achei genial! Eu adoraria ter recebido um postal de Roma de uma tia praticamente desconhecida. Sempre gostei das coisas correspondidas e ali naquela rara troca de carinho entre nós entendi que ela estava correspondendo também seu afeto por mim. Hoje não escrevo mais cartas, mas sou uma blog writer convicta. E já troquei correspondências virtuais com pessoas de vários cantos do mundo. Construí amizades( e inimizades também) através de correspondências virtuais. Inclusive com um jornalista internacional, num papo inesgotável que estendeu-se por mais de dois anos onde abordamos desde o existencialismo humano a crise européia, das diferenças eternas entre homens e mulheres as tecnologias de transmissão de imagem, da arte ao consumo. E já conversei sobre arte contemporânea com um artista visual da Korea, um músico da Sicília e um estudante do Egito.  E sobre cultura popular com um jornalista Sírio  e um merchand italiano. Me sinto plena quando consigo compreender um pouco da alma das pessoas, e de alguma forma instigá-las.
Com a internet, os jornalistas, segundo meu ponto de vista, tornaram-se pessoas bem mais próximas deixaram de ser apenas aqueles Deuses e Deusas da bancada, que existem só da cintura para cima. Tornaram suas rotinas de trabalho mais próximas daqueles que tem a oportunidade de curtir sua fan page no Facebook ou de segui-los no twitter.  Sempre gostei das colunas de cultura dos jornais, desde criança, e sonhava com jornais e   revistas que falassem só de teatro, arte e cultura. Mas sempre achei  o jornalismo distante de mim, embora tenha  colocado  na ficha de inscrição de meu primeiro vestibular segunda opção o curso de jornalismo. Fato que a época fez que meu irmão me perguntasse se eu entendia o que um jornalismo fazia. E se eu fosse jornalista em que área gostaria de atuar. Pensei, e de fato eu não tinha ideia nenhuma. Ele riu e me perguntou se eu seria uma daquelas jornalistas de terninho e maquiagem carregada. Eu só pensava em teatro, estava colocando um curso mais difícil que o primeiro na minha segunda opção, eu não seria jornalista. "-Mas me responde que tipo de jornalismo gostarias de fazer?" Pensei um pouco e respondi: "-Daquelas que vivem noutro lugar e falam de outra cidade ou de outro país." Meu irmão caiu na gargalhada. "-Correspondente? ", eu já irritada respondi com um seco: "-É!" vendo que ele seguia rindo da minha cara decidi dar mais características a personagem que ele me fazia desvendar num possível eu. "-Poliglota! Daquelas que falam e escrevem sobre personalidades, arte e cultura." Meu irmão parou de rir de súbito, olhou para minha cara, falou aquele apelido que eu detestava e disse: "Ah, eu sabia que não seria qualquer coisa... Algo sempre me disse que esta pinta de puta americana na tua face era mais que um sinal...Correspondente poliglota ou atriz! "

Guardei esta lembrança no arquivo morto de minha memória por anos e anos, entre correspondências, virtuais, eis que um dia surge o convite para escrever sobre arte, cultura e personalidades de minha terra natal. E a denominação que ganho do veículo de mídia, impressa e escrita que me convida a escrever sobre cultura é o de correspondente. Escrever sobre artistas de minha terra natal que acontecem mundo afora. E inevitavelmente o tempo envia suas correspondências, trazendo a tona tantas lembranças.
Meus escritos agora não são só peças e artigos de teatro, minhas correspondências não são apenas para os amiguinhos do colégio, para os familiares, amigos ou mestres.  Agora falo a minha cidade ( e a quem mais queira me ler em qualquer canto do mundo via internet), sou correspondente do E-cult mídia ativa, falo da cultura que sai de minha terra natal e se espalha mundo afora, ou daqueles que vão levar a arte até lá, ainda timidamente, como a menina tímida de minha infância que segue vivendo em meu íntimo. E sabe-se lá do que mais escreverei. É uma atividade nova na minha vida, um gérmen apenas de algo que há muito trago em mim. Não sou uma jornalista, sigo sendo atriz, com teatro circulando nas veias e a arte em cada poro de minha pele. E não nego que adoraria corresponder-me com aqueles que já partiram, fosse meu avô, meu irmão, Paulo Autran ou a minha infância para contar-lhes a novidade. E espero de coração que haja alguma forma deles onde estão lerem os artigos escritos pela correspondente do E-cult mídia ativa, sim aquela que tem uma pequena pinta na face e é poliglota!


28 de maio de 2012... 


Acompanhem o E-cult mídia ativa 
 e se quiserem se corresponder comigo
  podem enviar e- mail para  luciahbrasil@hotmail.com
mas já aviso eu posso escrever  no dia seguinte 
 ou demorar uma vida para responder
mas sempre respondo!!!

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